As unhas vermelhas de dona Lúcia



Você acredita em vida após a morte? - perguntou Ana, como quem não quer nada.
Percebi que ela estava um pouco melancólica, menos empolgada que em outros dias.  Respondi que sim, que a vida é tão boa que não poderia simplesmente acabar.
Ana olhou para mim e continuou, num movimento automático, a borrifar água nas minhas unhas. 
Essa semana passei por um negócio que não me sai da cabeça - disse ela, disfarçando uma tranquilidade que não havia. - E continuou - Fui fazer as unhas da dona Lúcia, freguesa nossa do salão há muitos anos. Tadinha, toda doentinha, nem dá pra acreditar, nem era tão velinha assim - falou com pena.
O que ela tem? - perguntei.
Teve câncer, conseguiu se livrar da primeira, mas a segunda derrubou a coitadinha. Tão nova, só cinco anos mais velha que eu. 
É... – disse - cada um tem um começo, um meio e um fim. Não tem como escapar Ana... 
- A manicure nem percebeu o que falei,  estava com a cabeça bem distante do que fazia.
Mas tô aqui pensando uma coisa que não me sai da mente...
O que  foi Ana, por que você tá assim? – incentivei para falar, já que precisava tanto. 
Ai, num sei...  - disse ela aflita. Tô com um negócio ruim em mim... dona Lúcia era tão boa pessoa.
Ela morreu? - perguntei.
Então, morreu anteontem. Nem acredito, até agora não consegui entender isso direito. Ela parou de lixar minha unha, olhou pra mim e disse:
 - Fiz uma coisa que não deveria nunca, nunca ter feito! – bateu com a lixa várias vezes na própria cabeça.
Como assim? O que aconteceu Ana?   
- Dona Lucia sempre foi uma mulher muito vaidosa, muito mesmo. Toda semana ela estava aqui no salão, sempre impecável dos pés à cabeça. Seu Agenor, homem muito bom para ela, gostava de ver a mulher arrumada, era ele que vinha aqui e ficava com ela. Esses dias o marido dela me ligou, dizia que ela queria fazer a unha. Como estava muito fraca, fui até a casa dela. Fiquei um pouco impressionada do jeito que ela estava mais-pra-lá-que-pra-cá. Nunca tinha visto ela assim. Ela quis fazer a unha da mão e do pé e pintou de vermelho, como sempre. O marido é que gosta dessa cor. Não gosto de vermelho pintado na unha de quem está mais-pra-lá-que-pra-cá. Até escova fiz nela, só não pintei os cabelos, ela não conseguia ficar sentada direito. 
- A vaidade não tem lugar, nem idade. Certa vez, meu pai, recém saído de uma cirurgia bem complicada,  queria que fizesse a barba dele...
- Aí ela me pediu para depilar o buço – continuou Ana – disse a ela que não precisava, que estava bom. Ela insistiu, disse que queria tirar também do queixo. Eu não fiz! Falei pra ela que tinha esquecido a cera quente e que faria no outro dia.  E não é que no outro dia a mulher morreu! Bateu as botas! Ontem foi o enterro dela, o marido ligou pra avisar. 
Não?! Sério? – disse atônita. Nossa, essas coisas parece que só acontece em novela...- disse meio sem saber o que dizer a ela. 
E agora? -  E agora, o quê? - perguntei.
Será que ela vai aparecer pra mim com um bigode e queixo peludo, mostrando suas unhas vermelhas dizendo que menti pra ela? Juro que foi pro bem dela, pra que sentir mais dor, quando se está nas últimas. Pra quê? Fiquei com dó de fazer, juro que não foi por maldade. 
Ana fez várias vezes o sinal da cruz, apertou o peito e começou uma reza de proteção que não dava para entender o que dizia.
E hoje, o marido dela veio aqui com três sacolas cheias de roupas e sapatos da dona Lúcia. Ali no canto, tá vendo?  - apontou a lixa na direção delas. Olhei e vi sacolas bem cheias e fartas.  – Fiquei assustada e não entendi por que ele deu essas roupas pra mim. 
Vai ver é para esquecer mais rápido da esposa, pra não ter recordação. 
Que nada, ele disse que meu corpo é parecido com o dela. Viiixi, cruz credo, Ave Maria! Deus me perdoe falar assim, mas usar a roupa da defunta que eu pintei as unhas um dia antes da morte dela?! Ai não meu Pai, isso não, eu não vou usar nadinha. 
Ana passou a lixar freneticamente minhas unhas, parecia que tinha visto o fantasma da desencarnada.
O que você vai fazer com esse tanto de roupa? - perguntei, pra quebrar o clima.
Só peguei pra não fazer desfeita, mas fiquei de orelha em pé e toda arrepiada quando abri a primeira sacola e vi a muda de roupa do dia que fui lá.  Só faltava essa, será que ela vai aparecer nessa noite reclamando? - diz Ana envolvida com seus medos e pressentimentos. 
Automaticamente Ana tirava minha cutícula, sem arrancar um bife sequer. Talvez pensasse em dona Lúcia ou em algum outro pensamento que lhe desse sossego para enfrentar a próxima noite.

Foto: Camila de Oliveira

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